domingo, 18 de junho de 2023

RESENHA*

 IN MEDIA TRAINING - HALLAI CULT*

BOB DYLAN & NECAO CASTILHOS ... "MR.TAMBORINE MAN"*

 


 cão farejador

snif...farejando

bob dylan

&

 necao castilhos

  



TRADUÇÕES DE MR. TAMBOURINE MAN 

 NO BRASIL

75-7968.2017v37n2p101 


DA REFRAÇÃO À RETRADUÇÃO

 

Maiaty Saraiva Ferraz*

Universidade de São Paulo

 

Resumo: Este artigo inicia com uma introdução que destaca de maneira

geral as questões mais significativas até o momento atual com relação à

tradução de canções. Em seguida são apresentados os conceitos de refração

e retradução, que dão subsídio para

 um estudo das traduções gravadas

da canção Mr. Tambourine Man de Bob

 Dylan, no Brasil.

 

Palavras-chave: Tradução; Canção;

 Refração; Retradução.

 

TRANSLATION OF MR. TAMBOURINE MAN AT

 BRAZIL:

FROM REFRACTION TO RETRANSLATION

 

Abstract: This article starts with an

 introduction that points out an

 overview

about the most significant issues concerning song translation until

the present moment. After that, it presents the concepts of refraction and

retranslation which form the basis for a study of the translations of the

song Mr. Tambourine Man by Bob Dylan recorded in Brazil.

 

Keywords: Translation; Song; Refraction; Retranslation.

 

* Maiaty Saraiva Ferraz cursa doutorado no Programa de Estudos da Tradução

da FFLCH-USP. É mestre em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-

-Americana pela FFLCH-USP, graduada em Letras (Licenciatura e Bacharelado

em Português e Inglês) pela Universidade Mackenzie. É professora da FATEC

(Centro Paula Souza) e coordenadora do Núcleo de Ensino de Línguas da FATEC

Itaquera. Atua como tradutora pública desde 2001. Universidade de São Paulo,

São Paulo, Brasil. E-mail: maiaty@yahoo.com.br

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 102

Maiaty Saraiva Ferraz

 

Introdução

A tradução de canções, embora esteja presente na sociedade e

nas manifestações culturais da vida cotidiana, necessitou de um

período de tempo mais longo que outras formas de expressão cultural

para se tornar objeto dos estudos da tradução.

 

Uma das razões

prováveis desse fato reside na problemática de abordar um gênero

artístico que se estrutura com frequência em três elementos que devem

ser considerados: a melodia, a letra e a performance.

 

 Os estudiosos

da tradução de canções têm buscado desenvolver propostas

de abordagem que integrem esses elementos de forma equilibrada.

 

Entre as questões envolvidas no estudo da tradução de canções, julgamos

oportuno destacar algumas questões abordadas por

 Susam-

-Sarajeva (2008, p. 189) sobre tradução e música.

 

 Entre os tópicos

discutidos, a autora ressalta uma das questões mais importantes e

provavelmente a primeira a ser discutida no âmbito da tradução de

canções: a dificuldade de se estabelecer os limites entre “adaptação”,

“versão”, “tradução”, etc.

 

 Para a autora, é praticamente impossível

determinar onde termina a tradução e começa a adaptação

quando se fala em termos de tradução de canção popular.

 

 A autora

também lembra que as abordagens funcionais, como a teoria do

Skopos, têm recebido maior atenção por parte de pesquisadores da

tradução de canções, como Low (2005, p.185) e Franzon (2008,

p.373-399).

 

 Os estudos mais recentes sobre a tradução de canções

têm abordado questões que devem ser consideradas quando se busca

entender o processo e o produto da tradução de canções.

 

 Susam-

-Sarajeva (2008, p.191) aponta diversas questões que levam em

consideração esses dois aspectos (“processo” e “produto”) e que

envolvem o intérprete e o público-alvo, o meio de divulgação da

tradução, se em gravação ou performance, o modo da apresentação

do texto, seja em encarte, libreto ou outro e outras aparentemente

inúmeras questões que devem ser respondidas.

 

A autora acima citada também sugere novos caminhos a serem

seguidos pelas pesquisas sobre tradução e música, e destacamos

aqui alguns dos tópicos. Susam-Sarajeva (2008, p.193) chama a

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Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil:

da refração à retradução

atenção para a importância da criatividade na tradução realizada

para ser cantada.

 

 Para Jessica Yeung (apud Susam-Sarajeva, 2008,

p. 197), o conceito tradicional de “fidelidade” não contempla na

totalidade o processo de tradução nesse contexto.

 

 Outro tópico importante

para Susam-Sarajeva (2008, p. 193) é a intertextualidade.

Consideramos que esse é um aspecto diretamente relacionado à retradução,

especialmente de canções, e que deve ainda ser bastante

explorado pelos pesquisadores. Outros dois tópicos sugeridos e que

possuem certa conexão são a questão da recepção e da produção

das traduções e a da distribuição da música e os aspectos econômicos

dos mercados globais e locais. Susam-Sarajeva (2008, p.

194) também lembra a necessidade da abordagem de questões de

identidade (étnica, cultural, de gênero, linguística, nacional), que

acreditamos estarem relacionadas ao conceito de refração, a seguir.

 

Refração e tradução de canções

André Lefevere (2004, p. 239) entende as traduções como uma

das formas de um grupo de fenômenos aos quais chama de “refrações”,

estas definidas como a “adaptação de uma obra literária para

um novo público com a intenção de influenciar o modo como esse

público lê a obra” (LEFEVERE, 2004, p. 241).

 

Lefevere considera

que a crítica também é uma forma de refração, embora menos

evidente que a própria tradução, bem como antologias, e observa

que todas essas “refrações” contribuem para estabelecer a reputação

de um autor ou de sua obra. Ao estudar o exemplo da obra

de Brecht, Lefevere aborda questões relativas a peças desse autor

alemão que foram traduzidas para o inglês por três tradutores.

 

 Lefevere

observa que a grande maioria do público de teatro não teria

acesso ao texto original de Brecht e mostra como as refrações, entre

elas as traduções e manipulações nelas realizadas, conduziram

a uma leitura e imagem determinada de Brecht, significativamente

ajustada a convenções e ideias do universo anglófono no qual suas

obras estavam sendo inseridas.

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Maiaty Saraiva Ferraz

 

Alguns aspectos acima mencionados são relevantes também

para abordar as traduções de canções para serem cantadas, mais

especificamente de canções populares.

 

Podemos lembrar que um

grande número de artistas de música popular teve suas canções

adaptadas para novos públicos com ênfase apenas em alguns aspectos

de seu trabalho.

 

 Citamos como exemplo os Beatles, que tiveram

diversas adaptações (ou versões, como são às vezes chamadas

as gravações de canções traduzidas) de suas canções destacando

a temática amorosa ou apenas o gênero musical do rock and roll.

 

Se considerarmos que o mercado musical, mesmo em tempos midiáticos

como os atuais, ainda se utiliza da crítica para divulgar a

obra de um artista, para criar e fixar “rótulos” e associar artistas a

movimentos e momentos musicais, a definição de Lefevere de que

a crítica seria uma forma de refração menos evidente é certamente

aplicável. E podemos considerar que, mesmo com a possibilidade

aprendizado de línguas estrangeiras, grande parte do público

brasileiro ainda não tem a possibilidade de compreender letras de

canções em inglês sem recorrer a traduções, independente do formato

dessas traduções.

 

 As antologias, mencionadas por Lefevere

como forma de refração, também acontecem no universo musical,

e geralmente recebem o nome de coletâneas, coleções ou tributos.

Lefevere (2004, p. 242) observa também que as refrações estariam

inseridas num sistema literário, no qual os componentes

ideológico e financeiro são parte integrante e ativa, além do componente

do status de um artista na sociedade.

 

 Quanto ao componente

financeiro, Lefevere aborda duas diferentes realidades, a de

uma “undifferentiated patronage”, em que apenas uma pessoa,

grupo ou instituição com uma única ideologia seria responsável

pelo suporte monetário, e a de uma “differentiated patronage”, em

que não ocorre homogeneidade ideológica, e interesses conflitantes

estariam envolvidos. Ambas situações também podem ocorrer no

campo da música, embora a primeira mencionada pareça ser mais

comum que a segunda.

Outra consideração relevante na teoria da refração diz respeito

à existência de uma “poética” da sociedade receptora da obra

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Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

traduzida, uma espécie de código de comportamento, que engloba

elementos de estilo, linguagem, gênero, além do aspecto funcional

da literatura na sociedade (LEFEVERE, 2004, p. 242).

 

 Entre

as “restrições” que integram sistemas literários, Lefevere destaca

questões relativas à naturalidade na linguagem, ocasionadas pelas

diferenças culturais.

 A naturalidade é um dos cinco requisitos que

Peter Low (2005, p.185) inclui em seu “Pentathlon Principle”,

que apresenta cinco critérios que devem ser considerados ao traduzir

canções para serem cantadas. São eles: cantabilidade, sentido,

naturalidade, ritmo, rima.

Ao abordar refrações de Bertolt Brecht, Lefevere observa que

o grau de aceitação de um artista pode ser determinado pela necessidade

desse artista e de sua obra na cultura para a qual será

traduzida

 (LEFEVERE, 2004, p. 243).

 

Esse fator explica não somente

a razão das refrações acontecerem, mas a maneira como

elas ocorrem. No mercado musical, refrações ocorreram (e ainda

ocorrem) principalmente por questões culturais de ordem social,

política ou religiosa.

Como é possível observar, a refração é uma realidade da tradução

de textos de natureza literária que pode ocorrer também em tradução

de canções. A seguir, trataremos de uma série de refrações

de uma das canções de Bob Dylan, Mr. Tambourine Man.

Refrações de Mr. Tambourine Man

 

A canção Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan, faz parte do

álbum Bringing It All Back Home, lançado em março de 1965.

 

 A

essa altura da carreira, Dylan já havia incorporado a seu trabalho

o uso da guitarra em apresentações e gravações (e as mudanças

de ritmo e estilo que viriam com esse advento), o que provocara

diversas reações de contrariedade por parte de fãs e críticos.

 

 Entretanto,

seu público crescera, a despeito de críticas e de vaias recebidas

em shows. Dylan já não aceitava mais ser classificado como

um artista de uma única categoria, de um único estilo musical.

 

 Ser

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Maiaty Saraiva Ferraz

considerado um compositor folk provavelmente significaria uma

restrição criativa a que ele não já não desejava se submeter, tanto

em termos de melodia quanto em termos de letra.

Mas a influência

e as lições aprendidas com músicos e compositores da tradição folk

norte-americana (como Woody Guthrie e Leadbelly) jamais deixariam

de fazer parte de seu trabalho.

Mr. Tambourine Man está entre as canções mais conhecidas de

Dylan. Como outras de suas canções, também recebeu gravações

por outros artistas, as chamadas “covers”. Johnny Rivers, Johnny

Johnson, William Shatner e Judy Collins estão entre os que fizeram

regravações da canção.

 

 Entretanto, os Byrds foram provavelmente

os primeiros a realizar uma gravação cover de Mr. Tambourine

Man.

 

 Os Byrds lançaram também em 1965 seu primeiro álbum, que

se chamou exatamente Mr. Tambourine Man, no qual gravaram,

além de canções de autoria do grupo e de outros autores (como Pete

Seeger), uma versão dessa e de outras canções de Dylan:

 

 All I

Really Want To Do, Spanish Harlem Incident” e “Chimes of Freedom

(do álbum Another Side of Bob Dylan, de 1964). Tanto a

gravação de Bob Dylan quanto a dos Byrds atingiram o topo das

paradas naquele momento. O estilo vocal e instrumental, além da

presença de canções de Bob Dylan e Pete Seeger, valeu aos Byrds o

epíteto de folk rock, e seu trabalho foi também bastante associado ao

dos Beatles.

 

 Outras canções de Bob Dylan ainda foram gravadas pelos

Byrds posteriormente, que reuniu e relançou todas no álbum

The

Byrds Play Dylan, em 1979. Gravações das canções de Dylan feitas

pelos Byrds também foram lançadas em formato de disco compacto,

o que era comum na época; principalmente nos anos 1960 e 1970.

A gravação que os Byrds fizeram de Mr. Tambourine Man em

seu primeiro álbum pode ser considerada uma refração intralingual,

pois se trata de uma adaptação por redução que dirige a leitura dos

receptores dessa canção. A canção original de Dylan possui quatro

estrofes e um refrão, que é cantado no início da canção e após cada

estrofe (ver letra completa no final deste artigo).

 

 Os Byrds, em sua

gravação, cantaram apenas o refrão, seguido da segunda estrofe da

letra e depois o refrão novamente:

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Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

Refrão

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me.

I’m not sleepy and there is no

place I’m going to.

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me.

In the jingle jangle morning I’ll

come followin’ you.

Segunda estrofe de Dylan

Take me on a trip

upon your magic swirlin’ ship.

My senses have been stripped,

my hands can’t feel to grip,

my toes too numb to step

wait only for my boot heels

to be wanderin’.

I’m ready to go anywhere,

I’m ready for to fade

into my own parade.

Cast your dancing spell my way,

I promise to go under it.

A letra da canção de Dylan, extensa e complexa, é apresentada

na gravação dos Byrds apenas parcialmente. É evidente que

apresentar isoladamente uma estrofe da canção de Dylan ao invés

das quatro estrofes da letra completa dirige a leitura de Mr. Tambourine

Man num sentido específico e mais restrito. A gravação

do Byrds apresenta ao público apenas cerca de um quarto da letra.

Outro elemento que deve ser considerado nessa gravação é o arranjo:

na gravação dos Byrds, o refrão é cantado em coro, diferentemente

do arranjo de Dylan, que em sua gravação canta sozinho

a letra. Como dissemos, a gravação dos Byrds para essa canção

(assim como a de outras canções do álbum) apresenta um estilo que

se aproxima da chamada música folk norte-americana.

Ao reduzir a letra da canção para cantar apenas o refrão e uma

estrofe, grande parte das imagens poéticas e sentidos complexos

que a letra completa de Dylan apresenta não são apresentados pelos

Byrds. E ao gravarem essa canção em estilo folk, fica evidente a intenção

de fazer com que ela seja ouvida e compreendida como uma

canção folk; estilo que havia marcado os primeiros álbuns de Bob

Dylan.

 

 Entretanto, o próprio Dylan não se sentia mais pertencente

a esse estilo. O fato de o álbum dos Byrds apresentar canções de

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Maiaty Saraiva Ferraz

 

Pete Seeger, artista folk, também contribuiu para que a gravação

de Mr. Tambourine Man feita por eles soasse e fosse compreendida

como uma canção folk, embora a canção de Dylan não o seja, como

uma leitura da letra total evidencia.

A gravação de compactos da canção também constitui elemento

de refração, pois reforça a ideia de que aquela seria a canção original

completa de Dylan, embora não fosse.

Os Byrds contribuíram muito para tornar a canção conhecida

pelo público estadunidense e de outros países. A trajetória das versões/

adaptações gravadas de Mr. Tambourine Man no Brasil foi,

por sua vez, mediada pela gravação dos Byrds.

As canções traduzidas recebem no mercado musical brasileiro o

nome de “versões”. No caso de Mr. Tambourine Man foram utilizados

os termos “versão” e “adaptação” pelos compositores que as

traduziram e gravaram. As gravações de versões brasileiras dessa

canção realizadas até o presente momento são as seguintes:

Mr. Tambourine Man, gravada por Renato e seus Blue Caps

com Zé Ramalho (1981), versão de Gileno;

“Sr. Camelô”, gravada pelo grupo Hallai (1987), versão de

Necão Castilhos;

Mr. Tambourine Man, gravada por Zé Geraldo (2007), versão

de Gileno com adaptação de Zé Geraldo; incluída no

álbum Catadô de Bromélias.

“Mr. Do Pandeiro”, gravada por Zé Ramalho (2009), versão

de Braulio Tavares, incluída no álbum Tá Tudo Mudando

- Zé Ramalho Canta Bob Dylan.

A primeira tradução para ser cantada que a canção Mr. Tambourine

Man recebeu no Brasil, de Gileno, foi gravada por Renato e

seus Blue Caps com Zé Ramalho, e data de 1981. Observamos um

intervalo de dezesseis anos entre a gravação original de Dylan e da

gravação dessa primeira versão brasileira. A influência da “refração

intralingual” realizada pela gravação dos Byrds pode ser detectada

por diversas características do arranjo e da letra nessa versão.

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Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

 

De maneira semelhante à gravação dos Byrds, o arranjo tem

a letra do refrão cantada em coro, instrumentação com guitarra e

bateria em ritmo de rock, reproduz o riff de guitarra da gravação

dos Byrds.

 

 Esses elementos apontam sem muita margem a dúvidas

para uma recepção de Dylan mediada pela gravação dos Byrds. A

letra traduzida por Gileno tem, assim como a refração de Dylan

pelos Byrds, a estrutura de refrão, uma única estrofe e novamente

o refrão.

 Seguem as letras do refrão e da estrofe única:

Refrão

Hey, Mr. Tambourine, toque

uma canção

Que me deixe flutuando sobre

o mundo

Hey, Mr. Tambourine Man,

toque mais pra mim

Quero estar voando em notas

pelo mundo

Estrofe única

Nesta mágica viagem que me leva

pelo céu

Entre estrelas de papel

Pelo céu da minha boca eu vou

cantando

Em nuvens de fumaça, como

novelos de lã

E tô pronto pra partir

Mesmo pra qualquer lugar

Quero mais é esquecer o hoje até

amanhã

Na letra em português, podemos observar várias diferenças em

relação à letra da canção de Dylan para o refrão e as estrofes.

 A

primeira, já mencionada, é que a letra completa de Dylan possui

quatro estrofes intercaladas pelo refrão. Na gravação dessa versão

traduzida, temos o refrão cantado no início e no final da canção e

apenas uma estrofe.

 

 Nessa estrutura, a versão de Gileno coincide

com a gravação dos Byrds, mas apresenta diferenças na letra. Um

contraste entre a tradução do refrão e a letra original revela que o

sentido dos versos sofre diversas manipulações. Nas letras alinhadas,

segmentos destacados são aqueles em que há coincidência de

significados de superfície entre a letra-fonte e a letra-meta:

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Maiaty Saraiva Ferraz

 

Refrão de Dylan (e Byrds) Refrão da versão de Gileno

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me

Hey, Mr. Tambourine Man , toque

uma canção

I’m not sleepy and there is no

place I’m going to

Que me deixe flutuando sobre o

mundo

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me

Hey, Mr. Tambourine Man, toque

mais pra mim

In the jingle jangle morning I’ll

come followin’ you.

Quero estar voando em notas pelo

mundo

Na tradução do refrão, privilegia-se o verso “Hey! Mr. Tambourine

Man, play a song for me”, que por sua repetição no refrão

e por conter o título da canção, tem especial destaque na letra em

inglês. Provavelmente porque a tradução palavra por palavra completa

desse verso não se ajustaria bem às notas da frase melódica

original, na versão em português não se repete a mesma tradução

para esse verso nos versos 1 e 3. No verso 1 se traduz o segmento

play a song” (“toque uma canção”) e um segmento havia ficado

de fora: “for me” (“[toque] pra mim”). Descarta-se, na letra de Gileno,

a declaração que o “eu” enunciador faz de seu estado insone

(“I’m not sleepy”) e de sua ausência de rumo (“There is no place

I’m going to”) no segundo verso. Com isso, a versão seleciona e

prioriza a temática do poder de encantamento e evasão agradável

da realidade que têm as canções (um tipo de evocação elogiosa da

música), apenas uma das temáticas inter-relacionadas na complexa

teia da letra de Dylan.

Quanto à estrofe única da versão de Gileno, considerando a

divisão em versos a partir das frases melódicas em que é cantada

a letra em inglês, o alinhamento de versos entre ela e a segunda

estrofe de Dylan poderia ser apresentado como segue:

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Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

Estrofe de Dylan gravada

pelos Byrds (segunda)

Estrofe da versão de Gileno

Take me on a trip upon your

magic swirlin’ ship.

Nesta mágica viagem que me leva

pelo céu

My senses have been stripped, entre estrelas de papel

my hands can’t feel to grip,

my toes too numb to step

wait only for my boot heels to

be wanderin’.

pelo céu da minha boca eu vou

cantando,

I’m ready to go anywhere, I’m

ready for to fade

em nuvens de fumaça como

novelos de lã

into my own parade. e tô pronto pra partir

Cast your dancing spell my

way,

mesmo pra qualquer lugar.

I promise to go under it. Quero mais é esquecer o hoje até

amanhã.

Na estrofe de Gileno, nota-se um tratamento da tradução similar

ao visto no refrão, em termos do que se prioriza ou se

descarta das temáticas e recursos da letra de Dylan.

 

 Se a compararmos

com a gravação dos Byrds, algumas correlações semânticas

reforçam a hipótese de que a versão brasileira partiu dela: a

versão se inicia a partir da mesma segunda estrofe de Dylan que

os Byrds selecionaram. Assim, a imagem principal da estrofe em

português é a de uma viagem mágica. Comparada com a estrofe

em inglês, a versão trabalha seletivamente, retomando apenas a

imagem da viagem (“take me on a trip”/ “nesta ... viagem que

me leva”) e utilizando a palavra “mágica” (“magic”) em relação

com essa viagem para compor uma imagética fantástica, surreal.

No entanto, “mágica” aparece adjetivando a própria palavra

“viagem”, ao passo que na letra em inglês, “magic” é adjetivo

para “ship” (barco, nave, nau). O “barco rodopiante” (“upon

your swirlin’ ship”) e mágico como veículo da viagem é descartado

na versão em português, e a ideia da magia se transpõe para

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 112

Maiaty Saraiva Ferraz

 

a viagem em si, num tipo de condensação dos sentidos do verso

da letra-fonte em que a relação lógica é clara: uma viagem feita a

bordo de um barco mágico rodopiante é uma viagem mágica.

 

 Não

traduzir “em teu barco rodopiante” permite ganhar o espaço valioso

de muitas notas no verso melódico. O segmento “I’m ready

to go anywhere” é traduzido quase totalmente palavra por palavra

em “tô pronto pra partir mesmo pra qualquer lugar”.

A ideia de viagem “pelo céu”1 não aparece em nenhum dos

versos da segunda estrofe de Dylan, embora haja, em outras estrofes

da letra completa de Mr. Tambourine Man, menções ao céus ,

especialmente na quarta estrofe, em que também se trata de um céu

noturno (um céu de diamantes, imagem que evoca, no brilho dos

diamantes, a luz das estrelas).Também no caso das “nuvens de fumaça

como novelos”, a motivação pode estar no segmento que fala

de “anéis de fumaça da mente” na quarta estrofe de Dylan (“Then

take me disappearin’ through the smoke rings of my mind”). A

inclusão de elementos da quarta estrofe de Mr. Tambourine Man

na versão em português é inequívoca na tradução quase palavra

por palavra do último verso daquela estrofe, “Let me forget about

today until tomorrow” (em “Quero mais é esquecer o hoje até amanhã”).

Comparando a estrofe da primeira versão em português com

a quarta estrofe da letra de Dylan, temos as seguintes relações entre

elas (em destaque):

 

Quarta estrofe de Mr.

Tambourine Man

Estrofe da versão de Gileno

Then take me disappearin’

through the smoke rings of my

mind.

Nesta mágica viagem

que me leva pelo céu

down the foggy ruins of time, entre estrelas de papel

1 (Na terceira estrofe: “but for the sky there is no fences facin’’”, e especialmente a imagem

de um céu estrelado ou “céu de diamantes” na quarta estrofe de Dylan:”Yes, to dance

beneath the diamond sky”).

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 113

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

far past the frozen leaves,

the haunted, frightened tress,

out to the windy beach,

far from the twisted reach

of crazy sorrow.

pelo céu da minha boca

eu vou cantando,

Yes, to dance beneath the

diamond sky

with one hand waving free,

em nuvens de fumaça

como novelos de lã

silhouetted by the sea, e tô pronto pra partir

circled by the circus sands, mesmo pra qualquer lugar.

With all memory and fate

driven deep beneath the waves

Let me forget about today until

tomorrow.

Quero mais é esquecer o hoje até

amanhã.

Essa análise das correlações semânticas mostra que a versão

de Gileno resgata mais ou menos na mesma medida elementos da

segunda e da quarta estrofes da letra de Mr. Tambourine Man de Dylan.

 Quanto aos versos que parecem ser totalmente descartados

de ambas as estrofes, eles são principalmente partes da letra da

canção que focalizam elementos e imagens de conotação negativa

ou ao menos desconfortável, dos quais o “eu” gostaria de se afastar,

ao menos momentaneamente, para uma suposta situação mais

confortável e agradável (ainda que de fuga) que a canção do Mr.

Tambourine Man poderia propiciar-lhe ao segui-la num tipo de

viagem mágica de esquecimento do “hoje” e de sua situação atual

de descaminho, entorpecimento e memórias “ruinosas” e “assustadas”

de um passado, de um “crazy sorrow”. Esse é um ponto de

contato entre os versos de Dylan que ficara de fora na versão da

estrofe e no verso descartado do refrão (“I’m not sleepy and there

is no place I’m going to”).

A temática de desconformidade do “eu” enunciador com sua

situação presente e real fica atenuada tanto na refração intralingual

dos Byrds quanto na interlingual gravada por Renato e seus Blue

Caps, mas ainda mais nesta última, em que ela só aparece sugerida

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 114

Maiaty Saraiva Ferraz

 

num dos versos, na expressão do desejo de esquecer o hoje. Nesse

sentido, a versão em português leva mais longe a direção de releitura

imprimida pela refração dos Byrds, que descartava as estrofes

com mais densidade de imagens representativas da situação desconfortável

e de desconformidade do “eu” da canção.

Julgamos que essas características da tradução fazem com que

a canção seja ouvida e compreendida de maneira diferente da canção

de Dylan. Assim como na refração intralingual realizada pelos

Byrds, a versão de Gileno dirige de forma específica a recepção

da canção. Por fim, consideramos esta versão em português uma

“refração interlingual” mediada por uma “refração intralingual”.

Conceito e visão geral de Retradução

Em sua introdução para a edição especial de Target – International

Journal of Translation Studies intitulada Voice in Retranslation

(2015, p.3-23), as autoras Alvstad e Rosa abordam conceitos

gerais sobre a questão da retradução. As autoras citam Koskinen e

Paloposki (2010, apud ALVSTAD; ROSA, 2015, p.7) que apontam

a retradução como uma segunda tradução de um produto ou

uma tradução que tenha sido precedida por outra. Essas autoras observam

também a possível existência, embora não muito comum,

de duas traduções do mesmo texto realizadas em simultaneidade

temporal.

Alvstad e Rosa (2015, p.8) ressaltam que a retradução pode ser

abordada em termos de sua história “interna” e sua história “externa”.

A história “interna” se aborda mediante a análise linguístico-

-textual dos textos e as reformulações por que passam ao longo das

retraduções. A história “externa” se traça por meio da identificação

de obras, da determinação da frequência com que ocorrem as retraduções,

além de outras questões contextuais (a partir de sugestões

do Gottingen Project, citado por ALVSTAD; ROSA, 2015. P. 8).

 

As autoras acima citadas ressaltam ainda a aplicação do “Five

W’s and One H approach”, abordagem em que são investigadas

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 115

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

cinco perguntas relativas à retradução: O quê? Quem? Onde?

Quando? Por quê? Como? (What? Who? Where? When? Why?

How?) e apontam autores que já contribuíram para sua formulação

e utilização na historiografia da tradução, como Gambier, Venuti,

Pym, entre outros.

Alvstad e Rosa (2015, p. 17) apresentam um perfil das variáveis

e categorias mais relevantes para o estudo das “vozes em retradução”,

do qual citamos e destacamos de maneira resumida: o número

e tipo de textos para retradução (desde um único texto-fonte até

várias traduções já existentes); a relevância dos textos utilizados

para a retradução (considerados como primários ou secundários,

ocasionais ou frequentes no processo); a apresentação da retradução

(apresentação explícita ou não de paratextos, a identificação

explícita, implícita ou não identificação como retradução, além de

rótulos paratextuais como “nova tradução”, “nova versão”, “nova

edição” e outros); em relação com traduções pré-existentes (assimiladora

ou confrontante); em competição pelo mesmo público (retraduções

ativas ou passivas); o intervalo de tempo em relação ao

texto-fonte (“hot” e “cold translation”) e em relação a traduções

pré-existentes (“hot” e “cold retranslation”); o status dos retradutores

(um único tradutor, equipe de tradutores, autotradução, tradutor

frequente ou ocasional); vozes textuais (vozes de narradores,

personagens, autores, paráfrases, citações, que podem ser analisadas

em retraduções); e vozes contextuais (paratextos, entrevistas,

críticas, diários, correspondências, rascunhos etc.).

Julgamos que tanto o conceito de “retradução” apresentado por

Alvstad e Rosa (2015, p. 3-23) quanto os elementos abordados por

elas em sua visão geral são interessantes para abordar as retraduções

da canção Mr. Tambourine Man realizadas no Brasil.

Retraduções de Mr. Tambourine Man no Brasil

Além da gravação de Mr. Tambourine Man, por Renato e seus

Blue Caps com Zé Ramalho (1981), apresentada com o título de

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 116

Maiaty Saraiva Ferraz

 

“versão” e traduzida por Gileno, outras três gravações de versões

dessa canção foram posteriormente realizadas, das quais trataremos

segundo sua sucessão cronológica.

 

A tradução de Necão Castilhos que o grupo Hallai gravou da

canção Mr. Tambourine Man em 1987, intitulada como “versão”,

recebeu o nome de “Sr. Camelô”. Essa retradução da canção apresenta

o refrão da canção intercalado a três estrofes. A gravação do

grupo Hallai também apresenta o refrão cantado em coro, como na

gravação dos Byrds, mas o arranjo difere em outros aspectos.

 O

grupo incluiu o som de uma gaita de boca no arranjo e fez pequenas

alterações na melodia, como explica o próprio Necão Castilhos

(HALLAI, 2009):

 

(...)Levei 6 meses para aprontar a letra e colocá-la em (E)

mi maior, O original é em (D), ré maior. Aquele novo tom

deu uma “cara” Hallai à música, tirou aquele toque solo

americano e revitalizou a canção que ficou feita para vocal

Hallai. A liberação da editora que detinha os direitos da

canção foi demorada, eles custaram a remeter à gravadora

o documento de autorização. Foi estudada cada palavra da

adaptação. (...).

Na versão de Castilhos, Mr. Tambourine Man  se traduz, tanto

no título da canção como no refrão, como “Sr. Camelô”. Castilhos

(HALLAI, 2009) explica essa tradução dizendo que “na verdade

era um simbolismo daqueles jovens que vendiam drogas (chocolate

/cabeça de CACAU 90 ... em

 GREENWICH VILLAGE dentro de um pandeiro,

pelas ruas do bairro”. Abaixo, alinhamos a letra do refrão

em inglês e o da retradução de Castilhos:

Refrão de Dylan Refrão de Castillos

 

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me.

Hey, Sr. Camelô, toque uma

canção pra mim.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 117

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

 

I’m not sleepy and there is no

place I’m going to.

Estou sem sono e não tenho para

onde ir.

 

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me.

Hey, Sr. Camelô, toque uma

canção pra mim.

 

In the jingle jangle morning

I’ll come followin’ you.

 

Na manhã ruidosa

eu irei contigo.

 

o refrão por Castilhos é notavelmente mais próxima

dos significados palavra por palavra da letra-fonte, se comparada

com sua antecessora, de Gileno.

 

 Para isso foram necessários

alguns desdobramentos de notas mais longas da melodia original

em notas mais breves, e esse procedimento também caracteriza

a tradução das estrofes, sendo especialmente notável (a ponto de

comprometer a “cantabilidade”) no verso “e a velha rua vazia está

demasiada morta para sonhar”.

 

 No restante da letra traduzida gravada

pelo grupo Hallai há mais manipulações semânticas em relação

à letra em inglês, com destaque para a diferença no número

de estrofes: três, em vez de quatro. A letra da tradução feita por

Castilhos apresenta as seguintes estrofes (alinhadas segundo as frases

melódicas em que são cantados os versos da letra de Dylan):

 

Primeira estrofe de Dylan Primeira estrofe de Castilhos

Though I know that evenin’s

empire

Embora saiba que o império

 

has returned into sand,

 da noite se desfez em areia,

vanished from my hand,

 me escapou por entre os dedos,

Left me blindly here to stand

 me deixou aqui cego

but still not sleeping. mas ainda sem dormir.

My weariness amazes me,

 O meu cansaço espanta-me,

I’m branded on my feet,

 mas tenho as pernas firmes,

I have no one to meet

 só não tenho ninguém pra ver

And the ancient empty street’s

 e a velha rua vazia

too dead for dreaming.

 está demasiada morta pra sonhar

 

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 118

Maiaty Saraiva Ferraz

 

Segunda estrofe de Dylan Segunda estrofe de Castilhos

 

Take me on a trip

 Leva-me em viagem

upon your magic swirlin’ ship.

 no teu estonteante barco mágico.

My senses have been stripped,

 Estou pronto a ir para qualquer

lado,

my hands can’t feel to grip,

estou pronto a desaparecer.

my toes too numb to step

wait only for my boot heels

 Lança o teu encantamento

to be wanderin’.

que eu prometo segui-lo.

I’m ready to go anywhere,

Os meus pés estão pesados;

I’m ready for to fade

 as minhas mãos, vazias;

into my own parade.

 os meus sentidos, amarrados.

Cast your dancing spell my

way,

O meu tambor de palhaço,

esfarrapado,

I promise to go under it.

 embora possa ouvir danças loucas

ao sol.

A segunda estrofe de Castilhos segue palavra por palavra os dois

primeiros versos da segunda estrofe de Dylan, antecipa a tradução

palavra por palavra de “I’m ready to go anywhere, I’m ready for to

fade” para o quarto e o terceiro versos, descarta o segmento “into

my own parade”, antecipa para o lugar do quinto e sexto versos

cantados por Hallai uma tradução condensada de “Cast your dancing

spell my way” em

“Lança o teu encantamento” e traduz palavra

por palavra “I promise to go under it”,

que na estrofe de Dylan

são os últimos versos. Toda a descrição do torpor de sentidos e

imobilidade que vai dos versos “My senses” até “too numb to step

se desloca para o início da segunda metade da estrofe, com algumas

condensações, deslocamentos e modulações de significados.

 O

segmento “wait only for my boot heels to be wandering” é descartado

na tradução. Os dois versos finais da estrofe de Dylan, que

haviam sido antecipados, dão lugar a uma antecipação de versos e

imagens da terceira estrofe da letra em inglês. Os versos iniciais da

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 119

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

terceira estrofe

 “Though you might hear laughin, spinnin’, swingin

madly across the sun” são condensados em ‘”embora possa ouvir

danças loucas ao sol”.

 “It’s just a ragged clown behind”, mais ao

final da terceira estrofe, e algumas ideias dos dois versos que o

antecedem são reconfigurados e condensados em

“O meu tambor

de palhaço, esfarrapado”

 no penúltimo verso da segunda estrofe da

gravação de Hallai. As demais partes da terceira estrofe de Dylan

são descartadas, de modo que a terceira estrofe de Castilhos trabalha

principalmente sobre a quarta estrofe de Dylan.

Quarta estrofe de Dylan Terceira estrofe de Castilhos

Then take me disappearin’

 Pelas ruínas do tempo,

through the smoke rings of my

mind,

bem além das folhas geladas,

down the foggy ruins of time,

distante do alcance da mente,

far past the frozen leaves,

 longe de uma tristeza louca.

the haunted, frightened trees,

out to the windy beach,

far from the twisted reach of

crazy sorrow.

Recortado pelo mar de areias

circences.

Yes, to dance beneath the

diamond sky,

Camelô das praias ventosas

with one hand waving free,

 e de todas as esquinas do mundo,

Silhouetted by the sea.

 coloque à venda de imediato

circled by the circus sands,

 todos os sonhos da mente

With all memory and fate

driven deep beneath the waves,

Let me forget about today until

tomorrow.

Assim eu esqueço o dia de hoje até

amanhã.

Estão em itálico no alinhamento acima os versos que têm significados

traduzidos palavra por palavra ou recuperados parcialmente .

Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 120

Maiaty Saraiva Ferraz

 

na letra de Castilhos. Nos dois casos, muitas vezes eles estão

deslocados para outros versos cantados. O que não aparece em itálico

na quarta estrofe de Dylan foi descartado. O que não aparece

em itálico na terceira estrofe de Castilhos foi acrescentado à letra

em inglês. A ideia de que o Sr. Camelô vende sonhos nas esquinas

do mundo parece derivar do recorte interpretativo que Castilhos

faz para a rede de imagens surrealistas de Dylan: a de que a letra de

Mr. Tambourine Man fala da fuga da realidade pelo uso de drogas

alucinógenas. Assim, os versos finais acrescentados por Castilhos

praticamente conduzem a leitura da letra de Dylan nessa direção,

em detrimento do componente de apologia que Mr. Tambourine

Man  faz da música, do ritmo e da dança, até mais reiterados nos

campos semânticos da letra em inglês que os elementos que poderiam

ser lidos por alusão a drogas.

Por todos esses elementos, julgamos que a retradução de Castilhos

gravada pelo grupo Hallai apresenta um caráter híbrido ( formado pelo  cruzamento de ideias entre necão castilhos & bob dylan ).    

tradução bastante literal com apropriação. Como refração, ela não

parece mostrar a forte mediação da gravação dos Byrds que se evidenciava

na versão gravada por Renato e seus Blue Caps, no que se

refere ao tratamento da letra: mostra-se diretamente pautada pela

letra completa de Dylan.

 

Outra retradução de Mr. Tambourine Man foi gravada por Zé

Geraldo em 2007, em seu álbum Catadô de Bromélias, feita a partir

da versão de Gileno e apresentada como adaptação pelo próprio

Zé Geraldo. Consideramos anteriormente a versão de Gileno (gravada

por Renato e seus Blue Caps) como uma refração interlingual

de outra intralingual. Oportuno agora mostrá-la lado a lado com a

de Zé Geraldo:

Versão de Gileno Adaptação de Zé Geraldo

Hey, Mr. Tambourine Man ,

toque uma canção

Ei, Mr. Tambourine Man , toca

uma canção

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 121

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

 

Que me deixe flutuando sobre

o mundo

Tô sem sono e não tenho para onde

ir

Hey, Mr. Tambourine Man,

toque mais pra mim

Ei, Mr. Tambourine Man, toca

uma canção

Quero estar voando em notas

pelo mundo

Que me deixe flutuando sobre o

mundo

Nesta mágica viagem

que me leva pelo céu,

Nesta mágica viagem

que me leva pelo céu,

entre estrelas de papel, entre estrelas de papel,

pelo céu da minha boca

eu vou cantando,

pelo céu da minha boca,

vou cantando,

em nuvens de fumaça

como novelos de lã

em nuvens de fumaça

feito um novelo de lã,

e tô pronto pra partir estou pronto pra partir,

mesmo pra qualquer lugar. seja pra qualquer lugar.

Quero mais é esquecer o hoje Quero mais é esquecer o hoje

até amanhã. e quem sabe o amanhã.

[Volta do refrão] [Volta do refrão]

Feito um lobo solitário

a vagar dentro da noite,

pelos cantos onde eu ando,

entre errantes e vadios,

entre loucos delirantes,

um bando de sozinhos,

é com eles que eu divido a minha

solidão.

É com eles que eu posso abrir o

coração,

mostrar minhas fraquezas,

falar da minha busca,

perdido na multidão,

 

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 122

Maiaty Saraiva Ferraz

 

à espera de um sinal,

à procura de um olhar

que possa me mostrar de novo a

direção.

[Volta do refrão]

Contrastando as duas letras, podemos observar que Zé Geraldo

fez alterações em relação ao refrão da versão de Gileno. Zé Geraldo

não adota a forma vocativa “Hey” em inglês, preferindo a forma

“Ei”, em português. Contudo, mantém a estrangeirização “Mr.

Tambourine Man”, inclusive no título de sua adaptação. Ele também

faz uma mudança no uso do imperativo, ao utilizar “Toca uma

canção”, enquanto a versão de Gileno traz “Toque uma canção”.

A primeira estrofe da adaptação de Zé Geraldo trabalha com

pequenas alterações sobre a estrofe única da versão de Gileno,

como uma supressão do pronome “eu”, a passagem de um plural

(“novelos de lã”) para singular (“um novelo de lã” na versão de Zé

Geraldo), e a substituição do comparativo “como” por outro mais

marcadamente da fala: “feito”. No sentido contrário, a forma mais

marcadamente oral “tô” é passada para “estou” por Zé Geraldo.

O verso “mesmo pra qualquer lugar” é alterado para “seja pra

qualquer lugar”. A conjunção “mesmo” é substituída por uma

forma verbal (“seja”). Os dois versos finais da estrofe de Gileno

“Quero mais é esquecer/O hoje até amanhã” são modificados para

“Quero esquecer o hoje/E quem sabe o amanhã”, havendo uma

alteração do sentido. É oportuno lembrar que a tradução de Gileno

se aproxima mais dos versos da canção original de Dylan (“Let me

forget about today until tomorrow”).

A alteração mais significativa está no número de versos que a

letra da adaptação de Zé Geraldo apresenta, com a inserção de uma

estrofe longa que não estava na versão de Gileno, e cujos versos não

podem ser considerados como tradução de quaisquer versos da letra

de Dylan. No entanto, eles recuperam, desdobram e focalizam especialmente

temáticas na letra original de Mr. Tambourine Man: a da

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 123

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

 

loucura e a da solidão, num direcionamento da interpretação de Mr.

Tambourine Man que não havia aparecido nas refrações anteriores.

O arranjo da gravação de Zé Geraldo não possui semelhança

com a gravação feita pelos Byrds. A letra é cantada apenas pelo

compositor acompanhado de instrumentos de cordas (violões e violino),

teclados e bateria. Quanto à existência de paratextos, a letra

da adaptação está incluída no encarte do CD sem acompanhamento

da letra original, mencionando a autoria de Bob Dylan.

A retradução mais recente de Mr. Tambourine Man é “Mr. do

Pandeiro”, gravada por Zé Ramalho em 2008, apresentada como

versão de Braulio Tavares, e incluída no álbum Tá Tudo Mudando

- Zé Ramalho Canta Bob Dylan. Esse álbum é um tipo de antologia

na qual Zé Ramalho grava versões de dez canções de Dylan; algumas

vertidas apenas por ele, outras em parceria com outros compositores

(Babal, Mauricio Baia) e algumas vertidas somente por outros

compositores (Mauricio Baia, Gabriel Moura, Babal, Caetano

Veloso, Péricles Cavalcante, Braulio Tavares, Geraldo Azevedo).

O álbum tem também uma gravação cover de Zé Ramalho para a

canção de Dylan “If Not For You”.

Merece comentário a questão dos paratextos desse álbum, lançado

em formato de CD. O CD apresenta referências visuais relevantes:

a capa do encarte de Zé Ramalho Canta Bob Dylan – Tá Tudo

Mudando faz uma alusão ao vídeo clip de “Subterranean Homesick

Blues”, em que Dylan, parado, em pé, vai soltando cartazes de papel

com fragmentos da letra da canção. Ramalho aparece em foto numa

cena alusiva (incluindo a vestimenta e o cenário ao fundo), segurando

nas mãos um cartaz onde se lê “Tá Tudo Mudando”, título da

versão de “Things Have Changed”, que também faz parte do álbum.

Dentro do encarte estão impressas as letras das versões gravadas por

Zé Ramalho, apresentadas com cada verso seguido de uma barra,

numa disposição linear, sem distinção de refrão ou estrofe. Contudo,

no site oficial de Zé Ramalho as letras são apresentadas de maneira

convencional, numa disposição em versos, com separação entre as

estrofes e o refrão. Cada página do encarte apresenta uma elaboração

artística, e a direção, concepção e realização artística ficam a

 

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 124

Maiaty Saraiva Ferraz

 

 

cargo de LaStudio, Leka Coutinho, Rony Corrêa e demais artistas

creditados. O encarte conta também com o texto crítico intitulado

“Ramalho Dylan: Zé Zimmerman da Paraíba”, escrito pela crítica

musical e jornalista Ana Maria Baiana.

O título da versão de Braulio Tavares para a canção, “Mr. do

Pandeiro”, representa uma domesticação. O refrão leva a adaptação

cultural mais longe, incluindo na tradução uma referência à

figura de Jackson do Pandeiro:

Refrão de Dylan Refrão de Braulio Tavares

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me

Hey, mister do pandeiro, toque

para mim!

I’m not sleepy and there is no

place I’m going to

Não estou com sono e não tenho

onde ir

Hey! Mr. Tambourine Man,

play a song for me

Hey, Jackson do Pandeiro, toque

para mim!

In the jingle jangle morning I’ll

come followin’ you.

Entre as canções desta manhã, eu

poderei te seguir.

Na versão de Braulio Tavares, Mr. Tambourine Man não é apenas

“Mr. do Pandeiro”, ele é também Jackson do Pandeiro, músico

nascido na Paraíba em 1919, um dos responsáveis pela divulgação

do forró no sudeste do Brasil. A referência ao artista nordestino

brasileiro caracteriza a leitura que Tavares faz da canção de Dylan:

o Tambourine Man tem nome e sobrenome, é de carne e osso, e

é brasileiro. A gravação de Zé Ramalho apresenta, na introdução

e no final, uma batida de pandeiro, dando um destaque ao som do

instrumento. Essa representação do Tambourine Man numa figura

real é uma interpretação da canção por um viés cultural, associando

a figura da canção à realidade do nosso país. Tavares opta por

domesticar a figura do tocador de pandeiro de Dylan.

A tradução da letra de Mr. Tambourine Man realizada por Braulio

Tavares é a única versão brasileira que apresenta o mesmo nú Cad.

Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 125

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

mero de estrofes que a letra de Dylan e, dentro de cada uma delas,

o mesmo número de frases melódicas versificadas, exatamente com

o mesmo aumento progressivo ao longo das estrofes que ocorre na

canção de Dylan. Nesse sentido, é como um ápice das versões de

Mr. Tambourine Man, que vão progressivamente aumentando o

número de estrofes, versos e temáticas incorporados com relação à

letra completa em inglês. Também é um ponto alto no tratamento

conjunto de letra e música, na completude no tratamento das imagens,

metáforas e temáticas de Dylan na letra de Mr. Tambourine

Man, seguindo de perto as imagens e as temáticas, ao mesmo tempo

em que resgata os retornos de sonoridade vocal (especialmente

os feitos por rimas finais) e no ter em conta a “cantabilidade” e a

naturalidade do verso cantado em português, fazendo lembrar da

terceira fase “evolutiva” das várias traduções de um mesmo texto

proposta por Goethe.

Reproduzimos abaixo as estrofes traduzidas acompanhadas do

texto original da canção:

Primeira estrofe de Dylan Primeira estrofe de Braulio

Tavares

Though I know that evenin’s

empire

Sei que, à noite, seus impérios

has returned into sand, desmoronam sobre o chão

vanished from my hand, ao toque das minhas mãos.

Left me blindly here to stand Eu só enxergo na manhã

but still not sleeping. um sol de assassinar.

My weariness amazes me, O cansaço me atordoa

I’m branded on my feet, enquanto eu ando para o além,

I have no one to meet procurando por ninguém

And the ancient empty street’s em velhas ruas, já desertas,

too dead for dreaming. sem poder sonhar.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 126

Maiaty Saraiva Ferraz

 

Segunda estrofe de Dylan Segunda estrofe de Braulio

Tavares

Take me on a trip Me leve nas viagens

upon your magic swirlin’ ship. do seu mágico navio.

My senses have been stripped, Eu já cansei deste vazio.

my hands can’t feel to grip, As minhas mãos tremem de frio,

my toes too numb to step mas os meus pés, que o chão feriu

wait only for my boot heels ainda têm forças pra seguir

to be wanderin’. o teu caminho.

I’m ready to go anywhere, Eu irei onde você quiser

I’m ready for to fade pelas rotas que tracei.

into my own parade. Se o teu canto eu escutei.

Cast your dancing spell my

way,

enfeitiçado eu fiquei,

I promise to go under it. e sei que já não vou seguir

sozinho.

Terceira estrofe de Dylan Terceira estrofe de Braulio

Tavares

Though you might hear

laughin’, spinnin’,

Se uma gargalhada louca

swingin’ madly across the sun, esvoaçar pela amplidão

it’s not aimed at anyone, e ecoar sem direção,

it’s just escapin’ on the run alguém vai pensar que são

and but for the sky, as muralhas do horizonte

there are no fences facin’. a desabar.

And if you hear vague traces E se alguém ouvir o eco

of skippin’ reels of rhyme de uma canção feita em pedaços,

to your tambourine in time, ressoando nos espaços,

it’s just a ragged clown behind, é só a voz deste palhaço,

I wouldn’t pay it any mind, que canta enquanto segue os passos

it’s just a shadow de uma sombra

you’re seein’ that he’s chasing. que ele vive a procurar.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 127

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

Quarta estrofe de Dylan Quarta estrofe de Braulio

Tavares

Then take me disappearin’ Vou sumir por entre a névoa

through the smoke rings of my

mind,

de um delírio enfumaçado,

down the foggy ruins of time, entre as ruínas do passado

far past the frozen leaves, deixo a folhagem glacial

the haunted, frightened trees, de um bosque branco e sepulcral,

out to the windy beach, vou para um mar de vendavais,

far from the twisted reach of

crazy sorrow.

longe das garras da tristeza e da

aurora.

Yes, to dance beneath the

diamond sky,

Sob um céu de diamantes

with one hand waving free, vou dançar como um menino,

Silhouetted by the sea. entre o oceano cristalino

circled by the circus sands, e um circo errante e peregrino,

With all memory and fate deixo as memórias e o destino

driven deep beneath the waves, sumir num abismo sem fim

Let me forget about today until

tomorrow.

Quero, amanhã, lembrar que hoje

eu fui embora.

Os elementos da retradução de Tavares anteriormente abordados,

como o refrão, o título da canção, o arranjo, caracterizam-na

como uma transcriação, além do caráter de domesticação pontual

no tratamento do refrão e do título e no ritmo de samba com que se

ouve tocar um pandeiro em certo momento do arranjo. É a refração

que apresenta a letra de Mr. Tambourine Man com abertura para

diversas interpretações de forma mais comparável à que a canção

de Dylan oferece e que lhe valeu variadas interpretações ao longo

do tempo.

Pretendemos que uma análise detalhada dos elementos semânticos

e estílisticos da letra da tradução de Tavares, Gileno, Necão

Castilhos e Zé Geraldo sob a luz dos aspectos teórico-práticos da

tradução de canções seja objeto de outro texto nosso.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 128

Maiaty Saraiva Ferraz

A letra da canção Mr. Tambourine Man está transcrita no site

oficial de Bob Dylan, disponível em: http://bobdylan.com/songs/

mr-tambourine-man/

Considerações finais

Os estudiosos do campo dos Estudos da Tradução têm buscado,

principalmente a partir do século XX, expandir e complementar

cada vez mais as pesquisas em áreas novas ou pouco estudadas,

contribuindo para tornar mais vísivel e integrada a multidisciplinariedade

inerente à atividade tradutória, de modo que mais

recentemente contamos com algumas propostas de instrumental

mais específico para abordar a tradução de canção para ser cantada,

assim como contribuem para seu estudo descritivo teorias

e conceitos que não foram concebidos especificamente para essa

modalidade de tradução, como é o caso dos estudos da adaptação

e de certo instrumental do ramo descritivo orientado à função (ou

ao contexto) proposto por Holmes (2004, p. 180-192) e da historiografia

da tradução.

A refração intralingual da canção Mr. Tambourine Man realizada

pelos Byrds em 1965 contribuiu para que fosse construída uma

leitura bastante dirigida da canção, recortando apenas sua temática

positiva de celebração da música, uma “imagem” que não apresentava

a canção em toda sua complexidade. Um fator que influiu na

divulgação da gravação dos Byrds foi ela possuir uma duração mais

curta que a canção original. Naqueles dias, as estações de rádio não

tinham como procedimento comum transmitir canções longas; e a

televisão, ao exibir gravações de música também preferia canções

breves (ou versões mais curtas de canções mais longas), pois ainda

não se falava em “video clip” na época, e grande parte das apresentações

para televisão recorriam à dublagem. Essas gravações

para televisão eram registradas em videotape e depois podiam ser

transmitidas em emissoras de TV no mundo todo. Nesse contexto,

a gravação dos Byrds tornou-se a mais popular. Essa maior poCad.

Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 129

 

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

 

pularidade alcançada pela gravação dos Byrds fez com que ela se

tornasse mais conhecida em nosso país nos anos 1960 e 1970 do

que a gravação do próprio Dylan. E foi essa refração, essa “leitura”

da canção Mr. Tambourine Man que serviu de parâmetro para

a primeira versão dessa canção em português no Brasil, gravada

pelo grupo Renato e Seus Blue Caps com a participação de Zé Ramalho,

com grande intervalo de tempo com relação à gravação dos

Byrds (e de Dylan). Seguem-se então as “retraduções” da canção

de Bob Dylan: a gravada pelo grupo Hallai, a de Zé Geraldo e a

gravação de Zé Ramalho. Cada uma dessas retraduções apresentou

características próprias. Necão Castilhos, em sua retradução

(gravada pelo grupo Hallai) escolhe fazer pequenas alterações na

melodia e privilegiar a literalidade na tradução da letra, a fim de

obter um resultado que considera mais próximo à sonoridade do

grupo, numa tentativa de imprimir sua voz (seu estilo) à tradução.

Podemos dizer que Zé Geraldo realizou uma nova refração a partir

da refração dos Byrds, chamando-a de adaptação. A retradução de

Braulio Tavares possui caráter de recriação, e é a que atende mais

completa e minuciosamente à simbiose entre letra e música, ao

mesmo tempo em que contempla mais características formais e do

tratamento imagético da letra em sua totalidade. Sua retradução,

que não segue os passos das anteriores, é a que dialoga mais de

perto com a canção de Dylan; e consegue obter uma inovação em

relação a elas ao inserir um elemento domesticador, é um tipo de

ápice na apresentação de Mr. Tambourine Man de Dylan em português,

fechando o círculo.

Cada uma dessas gravações está inserida em um contexto temporal

que a diferencia das demais, apesar da existência de certa

intertextualidade, especificamente entre a refração do Byrds e a de

Gileno, e entre esta e a regravação de Zé Geraldo. Julgamos oportuno

lembrar que retraduções dessa canção não foram realizadas

apenas no Brasil, o que contribui para demonstrar a complexidade

de uma canção que, ao ser (re)traduzida, atravessa diferentes processos

e resultados.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 130

Maiaty Saraiva Ferraz

 

Referências

ALVSTAD, Cecilia; ROSA, Alexandra Assis. Voice in Retranslation: An

overview and some trends. TARGET International Journal of Translation Studies.

Special Issue Voice in Retranslation, LOCAL, Volume 27, Issue 1, 2015, p.3-23.

DYLAN, Bob. Lyrics, 1962-1985. London: Grafton - An Imprint of HarperCollins

Publishers, 1993.

______. Mr. Tambourine Man. In: Bringing it All Back Home. USA:

Columbia,1965. 1 disco sonoro, lado B, faixa 1.

______. Mr. Tambourine Man. In: Bringing it All Back Home. USA: Columbia,

s.d. CD, faixa 8.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: The Byrds. In: The Byrds Play Dylan.

Rio de Janeiro: Columbia/Sony Music, s.d.. CD, faixa 1.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: The Byrds. In: The Byrds Play Dylan.

São Paulo: Columbia/CBS, 1979. 1 disco sonoro, lado A faixa 2.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: Renato e Seus Blue Caps. In: Mr.

Tambourine Man. São Paulo: Columbia/CBS, 1981. 1 disco sonoro compacto

simples, lado A, lado B.

FRANZON, Johan. Choices in Song Translation. Singability in Print, Subtitles

and Sung Performance. The Translator, Volume 14, Number 2, 2008, 373-399.

GERALDO, Zé. Catadô de Bromélias. Direção geral Zé Geraldo. São Paulo: Sol

do Meio dia/Unimar Music, 2007, CD.

HALLAI. Disponível em <http://hallai-hallai.blogspot.com/2009/07/bob-dylan.

html> Acesso em 16 fev. 2011.

______. Sr. Camelô. In: Sr. Camelô. São Paulo: 3M/BMG Ariola, 1987. 1 disco

sonoro, lado A, faixa1.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 131__

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Referências

ALVSTAD, Cecilia; ROSA, Alexandra Assis. Voice in Retranslation: An

overview and some trends. TARGET International Journal of Translation Studies.

Special Issue Voice in Retranslation, LOCAL, Volume 27, Issue 1, 2015, p.3-23.

DYLAN, Bob. Lyrics, 1962-1985. London: Grafton - An Imprint of HarperCollins

Publishers, 1993.

______. Mr. Tambourine Man. In: Bringing it All Back Home. USA:

Columbia,1965. 1 disco sonoro, lado B, faixa 1.

______. Mr. Tambourine Man. In: Bringing it All Back Home. USA: Columbia,

s.d. CD, faixa 8.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: The Byrds. In: The Byrds Play Dylan.

Rio de Janeiro: Columbia/Sony Music, s.d.. CD, faixa 1.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: The Byrds. In: The Byrds Play Dylan.

São Paulo: Columbia/CBS, 1979. 1 disco sonoro, lado A faixa 2.

______. Mr. Tambourine Man. Intérprete: Renato e Seus Blue Caps. In: Mr.

Tambourine Man. São Paulo: Columbia/CBS, 1981. 1 disco sonoro compacto

simples, lado A, lado B.

FRANZON, Johan. Choices in Song Translation. Singability in Print, Subtitles

and Sung Performance. The Translator, Volume 14, Number 2, 2008, 373-399.

GERALDO, Zé. Catadô de Bromélias. Direção geral Zé Geraldo. São Paulo: Sol

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______. Sr. Camelô. In: Sr. Camelô. São Paulo: 3M/BMG Ariola, 1987. 1 disco

sonoro, lado A, faixa1.

Cad. Trad., Florianópolis, v. 37, nº 2, p. 101-131, mai-ago 2017 131

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

______. Sr. Camelô (Bob Dylan/Necão Castilhos). Disponível em <https://

www.youtube.com/watch?v=PqssNUad6E4> Acesso em 05 jan.2016.

Traduções de Mr. Tambourine Man no Brasil: da refração à retradução

______. Sr. Camelô (Bob Dylan/Necão Castilhos). Disponível em <https://

www.youtube.com/watch?v=PqssNUad6E4> Acesso em 05 jan.2016.

HOLMES, James S. The Name and Nature of Translation Studies. In: VENUTI,

Lawrence. The Translation Studies Reader. 2 ed. New York & London: Routledge,

2004, p. 180-192.

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Zé Ramalho, Robertinho de Recife e Otto Guerra. Rio de Janeiro: Emi , 2008.

CD,100 minutos.

VENUTI, Lawrence (org.). The Translation Studies Reader. 2 ed. New York and

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ZÉRAMALHO (site official). Disponível em <www.zeramalho.com.br>

Acesso em 05 jan. 2016.

Recebido em: 01/12/2016

Aceito em: 16/02/2017

Publicado em maio de 2023

 


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