quinta-feira, 3 de junho de 2010

O AÇUCAREIRO / SUGAR BLUES
                                             by necão*

Nas paredes dos anos cinquenta,aquele zumbido da mamangava sobre as flores do maracujá enrolado na parreira. Aqueles tempos entravam na minha casa de um modo indiano, quando falavam que o elefante nascia velho.
No quarto da frente , após o abrir da janela , aquelas hortências azuis , recebiam todas as manhãs, aquele banho de mijo do mais branco urinol de uma família feliz.

Foi no primeiro café da manhã da minha infância ,que eu notei aquela “LÂMPADA DE ALADIM”, sobre a mesa redonda da cozinha.
Era o açucareiro, naquele formato das “MIL E UMA NOITES”, cheios de mistérios,  mas com uma exatidão mais ou menos milimetrada.
Pela manhã e no meio da tarde , depois de passar no armazem do “seu” Vitorino, para comprar aquele saboroso pão doce e o indefectível “um oitavo de manteiga” RAINHA DO SUL, eu encontrava na mesa aquele planeta de açúcar sempre cheio.

O café tá na mesa “anunciava a mama”, e nós saíamos em desabalada corrida para ver quem chegava primeiro naquela mesa farta sob o comando daquele histórico açucareiro.

O café no bule, o leite naquela panela de alumínio grande, e a mesa bem posta, com queijos, salames , pates, e com um pão feito em casa para dar conta daquela fome infantil de toda uma geração.
O açucareiro não parava, voava como um “tapete mágico” de mão em mão ; ora para colocar no café,ora para colocar açucar em cima da manteiga do pão.

Era uma festa branca ; energía pura !

Depois ,(-) aquele pátio, onde não tinhamos nada a perder , só a ganhar.

Bananas com laranjas, ameixas com goiaba, alface com repolho, laranja do céu com maça, peira de pau ao lado da porta dos fundos.

E no final da tarde aquele encher da tália com água do poço numa marcha lenta e preguiçosa.

A noite chegava inteiramente justa, e aprofundava nossas raízes naquele terreno fecundo e sólido.
“Floradas na Serra” era o filme que passava no Imperial, que já anunciava “O Cangaceiro “ do Lima Barreto... mas a “mama” falava muito era no diretor Cecil B. de Mille que nos créditos era mais importante que os astros. ( Os Dez Mandamentos/ O Maior Espetáculo da Terra /Cleópatra / Sansão e Dalila ).

Mas aquele açucareiro sempre alí , ás vezes no armário, e a maior parte do tempo na mesa, sempre cheio.

Aquele formato sempre me impressionou; quando Oscar Niemayer começou a desenhar Brasília, eu me lembro que alguns esboços foram publicados na revista “O Cruzeiro”, quando olhei pra aquilo, enxerguei o nosso açucareiro, aquelas formas arredondadas, aquelas harmonias que glorificam a aventura do espírito criador. Tenho certeza absoluta que a arquitetura de Brasília saiu do nosso açucareiro.

Os anos que antecederam a grande década de sessenta eram assim , levava uma forma de presunção estética, apesar de forte sangue aldeão.
Quem dentre nós não guarda lembranças desse" jazz" todo da vida neste “sugar blues” ardente em busca dos impulsos da imaginação.

O belo “canto da despedida” sempre me perseguiu e o primeiro aceno foi do açucareiro .
EPÍLOGO
 Depois de mais de 20 mudanças, dentro de um tempo de 40 anos, eu comecei numa tarde de agosto de 2009 , a remover os escombros de um resto de família ...e , no barro entre teias de aranha esquecidas ,achei o açucareiro da minha infância, aquele sentido profundo , aquela originalidade que tornava ele diferente de tudo , estava alí, clamando por socorro, clamando pela audiência perdida, daqueles cafés da tarde, em que ele era a Lâmpada de Aladim.

The end
p.s. A mais ou menos 10 anos atrás, o pai não estava bem e ficou alguns dias lá em casa, depois que tudo passou, ele perguntou pra Iara se podia morar com a gente ;
Iara Respondeu:  "Claro seu Mário, vamos mudar pra uma casa grande e tudo vai dar certo... "
Aí o pai respondeu: -" Eu posso levar o AÇUCAREIRO ?"

                                                                                     Foto de : Alice Zab












Billie Holliday - O Sugar Blues!