quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O QUARTO DO LICO*



                                                          O QUARTO DO LICO*
                                                                                                     by* Necão


Foi assim,... Era uma vez um rapaz que morava numa cidadezinha que tinha muita cerração, no inverno tudo era muito frio, e no verão tudo muito quente.
O Lico vinha de uma linhagem familiar muito querida na cidade, seu pai era político, e suas irmãs muito belas.
Tudo girava em torno disso, e a vida corria sorridente para todos.


Mas o Lico era uma pessoa que dava vários sinais de vida,Tinha tempo para a burguesia e, também tempo para o “poor side of town”, que era o meu caso.

O pessoal que morava na “faixa” era considerado elite, a turma lá de cima era o contrário “povão”.

Eu, apesar de morar na faixa, gostava muito da turma lá de cima, sempre tive esta tendência “poor boy”, influência talvez de um tempo familiar muito difícil e também por toques de meu avô que era comunista de plantar batatas no terreiro, e de ler a famosa “Tribuna Comunista”.

O Lico, num daqueles sinais de vida, em que ele era mais verdadeiro, certo dia, se aproximou de nossa turma para aprender tocar violão.
E, como sempre, eu era o mais acessível, ele chegou com aquela alegria , e ali pela música, conheci uma figura fantástica, cheia de sonhos e com um futuro para desfrutar.





                                                                                  Grande Otelo*
Corria a década de sessenta, e o cinema brasileiro estava em efervescência; filmes do Glauber Rocha (Barravento/ Deus e o Diabo na Terra do Sol... Assalto ao Trem Pagador do Roberto Farias... O Bandido da Luz Vermelha do Rogério Sganzerla... Os Cafajestes do Ruy Guerra... também já se falava em Roman Polanski, aquele livro do Morris West “Sandálias do Pescador” era a grande polêmica, pois se referia aos porões do Vaticano, história da ascensão de um Papa negro. Os Beatles e os Stones já faziam barulho,gente de teatro falava muito em Ionesco, a “Legalidade” perpetuava seus hinos, o livro do Capote “A Sangue Frio”, dava um novo norte aos jornalistas escritores, a música “Chega de Saudade” do João Gilberto tocava muito no rádio, Fidel Castro já estava no poder em Cuba, a “Doce Vida” do Fellini, passava no Cine Imperial, a Marilyn Monroe era a musa, e o Cândido Portinari pintava a papoula da lua das mulatas.


Esta era a cena, o “quantum, sem lenço e sem documento” o crescente da lua nova partindo para um carnaval no quarto do Lico.
A elite da cidade frequentava o quarto do Lico, era uma coisa assim “privê”, só para amigos que se “becavam” bem.
O quarto do Lico ficava nos fundos da casa dos pais, era uma espécie de “bunker”, ali só entrava quem realmente tivesse alguma condição financeira ou artística.



A década em que tudo começou*

A primeira vez que adentrei naquele quarto “surrealista”,tudo que eu tinha visto em matéria de estética foi pro saco.
Todo mundo falava ao mesmo tempo, as legendas se misturavam, não sobrava nem fuligem de incêndio, todos falavam de tudo, das meninas da tabacaria, das “loras” do “Meu Cantinho”, das gurias “lá de cima”, das balas de hortelã,do “escurinho do Cine Palácio”, dos homens de “chifre” do bolão do Aliança, das invocações dos “guris da Vila Osório, do cinema francês, do Alain Delon, da Brigitte Bardot e também da nova guria da fazenda que prometia futuros papos para noites quentes”.


Aquele quarto não servia para túmulo de santo, os sapatos sempre estavam em cima do guarda roupa, as roupas sempre fora do armário, o criado mudo falava, garrafas de fogo paulista e também aquelas garrafas de vinho frugal, onde todos bebiam para preparar a noite, naquela cidade sesssentista sob a música dos “Indomáveis”, que rachava as paredes do Clube do Comércio.
Assim era o Lico, um garoto feliz, que tinha uma galera de ouro!


Um texto escrito a máquina, num papel de folha de almaço me chamou atenção, na primeira vez que estive lá, peguei estes escritos, que guardo até hoje, e que resume e define aqueles tempos da primeira mocidade de todos aqueles guris, que sonhavam em namorar as meninas, mas bonitas da cidade.
Este é o texto que estava colado com durex na porta do quarto do Lico no lado de dentro. (anos sessenta)
“Depois de ter estudado o amor nos livros dos que o analisam, e na pele dos que o fazem, depois de ter interrogado mulheres instintivas e mulheres cerebrais, depois de ter examinado muitos e muitos casos, lido muitíssimas histórias, ouvido respostas de competentes, visto gráficos dos aparelhos que registram as curvas do pensamento, os imprevistos da vontade, as oscilações do sentimento, depois de ter escutado aqueles que resolvem por meio de química os mistérios do amor ,e aqueles que o explicam com a eletricidade, depois de ter dado atenção aos homens frios que o restringem na fórmula de uma equação e os exaltados que o dilatam pelas rimas de um poema, eu começo a pensar que, para compreender alguma coisa do amor, se eu tivesse que adotar um método, adotaria o teu.
- O meu?
- É o método mais racional, mais sério, mais científico, mais positivo.
Sem abrir os olhos, Liana perguntou:
-Mas que método é este?
O juiz curvou-se mais sobre o rosto dela e respondeu:
- Desfolhar malmequeres.
- Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer.
Paris, setembro de 1929.

Este era o Lico, com sua ânsia de viver, de ter amigos, de buscar a arte, de não ter preconceitos, de frequentar todos os lugares, de conhecer gente interessante, de curtir os anos sessenta como se fossem seus últimos tempos na terra. O Lico sempre comandou tudo, com aquele sorriso de “Colégio São José”, adquirido do Irmão Norberto, grande professor, responsável pela hora cívica dos sábados de manhã.

A eternidade naquele quarto tinha passaporte para sempre.
Aquele “intermezzo”, de sair da casa da namorada e ir para o quarto do Lico, para preparar o espírito para cair na noite era algo extraordinário, era a liberdade de pintar e bordar, com tamanha força que não tinha espaço para o hermético e o bolorento era tudo entretenimento.

A primeira “Casa de Cultura”, que eu frequentei, foi o “Quarto do Lico”. Certas noites eram tão afiadas que algumas luzes sobre valores intrínsecos seguiam itinerários sem censura. Todos ali, esparramados em almofadas de
pena de galinha, com os braços falando pela boca, tal era o entusiasmo de cada encontro.

O Lico sempre roubou a cena, agia como um veterano ator, mesmo quando estava sendo sincero. Todos curiosos, olhavam para aquele maravilhoso espetáculo, com o Lico comandando aquelas trepidações dos anos sessenta.
Existia um duplo sentido no Lico, ele, com aquela ironia de beira de mar, tirava “sarro” de tudo, achavam todos aqueles caras de uma “caretice” de general, mas curtia tudo aquilo sempre alegre, atirando no vento todas aquelas palavras que engravidavam na boca de outras pessoas.

O menor e o grande separados por centímetros, tudo se misturava, nem café nem torta de maçã, era o Lico. “bola pra frente a qualquer custo”; chegavam certas horas que todos ficavam sedentos, rebeldes e impertinentes e começavam a discutir sobre qualquer coisa ridícula.

Aí, o Lico introduzia um fim, naquela reunião de fim de semana, e todos iam para o Clube Aliança, continuar aqueles papos intermináveis e nenhum de nós saía ferido.
Juvenis, eis o que éramos.


p.s. estes escritos vão para todo pessoal que curtiu aquelas noites feéricas no “quarto do Lico”, e também para as musas inspiradoras: Nena, Maria Luiza, Marne, Ruth, Conceição,Maria Rita,Marilena,Solange,Leila,Beth,Nena do Lico,Gessy,(da Fazenda), Nilza Vera, Sandra, Mariza, Maria da Graça, Maria Aparecida, Lorena, Auda, Verinha, Carmem, Vera (filha da dona Alba), Antonieta (sincachambor), Shirlei (da Malta).
p.s. em especial a minha querida negra Iara, que morava na frente da casa do Lico, com o qual me casei em 1971....
Década de “60”, isto aconteceu!